Na antiga Roma, a expressão “pão e circo” representava a estratégia de apaziguar o povo com comida e entretenimento, desviando a atenção das reais demandas sociais. Dois mil anos depois, em pleno Tocantins de 2025, a fórmula segue viva: enquanto creches, UBSs, farmácias básicas e sistemas de abastecimento de água chegam a enfrentar abandono e subfinanciamento, prefeituras investem cifras milionárias – em sua maioria oriundas de emendas parlamentares – em shows musicais para a temporada de praias.
Com base em um levantamento realizado pela pesquisadora e doutoranda em Políticas Públicas Claudia Ferreira Severiano, o AF Notícias inicia a série de reportagens “Enquanto o palco brilha”, que busca revelar as discrepâncias entre os altos gastos com entretenimento e os baixos investimentos em áreas essenciais nos municípios tocantinenses.
A pesquisa, feita a partir do cruzamento manual de dados desatualizados de sites de prefeituras, diários oficiais e informações incompletas, mostra que, em alguns municípios, os cachês de artistas superam todo o orçamento anual de áreas como saúde e assistência social. O cenário levanta questionamentos sobre as prioridades públicas, a transparência na destinação de recursos e o uso político desses eventos.
“A cada nova atualização, os valores aumentam – e, em algumas cidades, os cachês ultrapassam os orçamentos inteiros da saúde ou da assistência. Transparência? No discurso apenas”, afirma Claudia.
CIDADES ILUSTRAM INVERSÃO DE PRIORIDADES
Pedro Afonso (com população estimada em 14,7 mil habitantes) destinou R$ 2,4 milhões a shows – valor similar ao orçamento de saneamento básico. Somente o valor das atrações Henry Freitas (R$ 650 mil) e Solange Almeida (R$ 400 mil) é equivalente à verba para o abastecimento de água da cidade.
Xambioá (10,6 mil habitantes) pagou R$ 1,52 milhão em espetáculos – incluindo R$ 600 mil só para o cantor Léo Santana – enquanto a saúde recebia apenas R$ 385 mil.
Araguacema (6,03 mil habitantes ) gastou R$ 3,79 milhões – mais que o dobro do orçamento da Assistência Social que é de R$ 1,9 milhão.
Palmeiras do Tocantins (com aproximadamente 4,8 mil moradores) contratou dois shows por R$ 500 mil (Marília Tavares e Chicabana), montante que poderia bancar uma UBS (R$ 366 mil), uma creche (R$ 274 mil) ou sistema de água (R$ 210 mil).
Filadélfia (7,8 mil habitantes) investiu R$ 1,93 milhão – o suficiente para manter a Biblioteca Municipal por mais de 200 anos ou a Assistência Farmacêutica por mais de uma década.
Itacajá (6,9 mil habitantes) alocou R$ 1,215 milhão em eventos, enquanto merenda, creches e saneamento operam com recursos bem menores.
Segundo Cláudia, esses valores não incluem custos extras com palco, som, segurança, limpeza e pessoal – e não há dados que comprovem retorno econômico em turismo ou geração de receita.
O USO POLÍTICO DOS EVENTOS
Embora financiados com recursos públicos, muitos desses eventos são amplamente associados a nomes de deputados, senadores e prefeitos – prática que fere o princípio da impessoalidade previsto no artigo 37 da Constituição Federal. Para a pesquisadora Claudia Ferreira Severiano, esse cenário revela como a cultura pode ser usada como ferramenta de promoção política:
“O cenário seria o mesmo se as temporadas de praia não funcionassem como plataformas de manutenção de poder político?”, questiona.
ENQUANTO O PALCO BRILHA…
Embora eventos culturais possam, sim, impulsionar o turismo e a economia local, a falta de prestação de contas e a ausência de indicadores objetivos de impacto impedem qualquer avaliação transparente. Enquanto os palcos iluminam as orlas, UBSs seguem sem médicos, escolas carecem de estrutura e comunidades continuam sem água potável.
A lógica do espetáculo se impõe sobre a das políticas públicas duradouras. Recursos extraordinários são consumidos em entretenimento de curto prazo, enquanto demandas estruturais permanecem ignoradas.
A principal atração que muitos municípios ainda não contrataram atende pelo nome de transparência – na origem das emendas, na execução dos contratos e nos reais impactos à população.
Se for para aplaudir de pé, que seja a entrega de uma creche, a ampliação de um hospital ou o fim do racionamento de água. Show bom mesmo é serviço público que funciona.
DADOS PRELIMINARES
Observação: Este levantamento é preliminar e baseia-se em informações coletadas de sites de prefeituras e diários oficiais. Devido à natureza desatualizada ou incompleta de algumas dessas fontes, é possível que haja imprecisões nos dados apresentados.
📍 Pedro Afonso
Item | Valor (R$) | Observação |
Total em shows | 2.447.500,00 | Inclui Henry Freitas (R$ 650 mil), Solange (R$ 400 mil) |
Orçamento com saneamento | 2.436.872,00 | Praticamente o mesmo valor dos shows |
Assistência farmacêutica anual | 397.241,00 | Valor 6 vezes menor |
Orçamento com abastecimento de água | 333.122,00 | Shows custam mais de 7 vezes esse valor |
📍 Araguacema
Item | Valor (R$) | Observação |
Total em shows | 3.792.200,00 | Custo altíssimo para porte do município |
Orçamento da Assistência Social | 1.985.970,00 | Shows custam quase o dobro |
Orçamento com Cultura | 91.000,00 | Disparidade de mais de 40 vezes |
📍Filadélfia
Item | Valor (R$) | Observação |
Total em shows | 1.930.000,00 | Apenas atrações, sem contar estrutura |
Assistência farmacêutica anual | 169.000,00 | Mostra desproporção: shows = 11 anos |
Biblioteca Municipal | 9.500,00 | Shows cobrem mais de 200 anos de manutenção |
📍Itacajá
Item | Valor (R$) | Observação |
Total em shows | 1.215.000,00 | Valor muito superior a setores essenciais |
Creche municipal | 120.000,00 | Shows custam 10 vezes mais |
Merenda escolar anual | 90.000,00 | Shows custam 13 vezes mais |
Farmácia básica | 150.000,00 | Shows custam 8 vezes mais |
Saneamento urbano | 195.000,00 | Shows custam 6 vezes mais |
📍Palmeiras do Tocantins
Item | Valor (R$) | Observação |
Cachê de 2 shows (exemplo) | 500.000,00 | Valor de 2 shows |
Construção de creche | 274.000,00 | Show custou quase 2x mais |
UBS (Unidade Básica de Saúde) | 366.000,00 | Show custou 1,4x mais |
Sistema de água | 210.000,00 | Show custou mais que o dobro |